terça-feira, 7 de outubro de 2008

Ausência

As pálpebras, que durante um longo tempo permaneceram seladas, ergueram-se lentamente, revelando a profunda dor e o peso que aquele gesto carregava.
Levantei-me da cama e deixei para trás o lençol quadriculado, uma combinação de bege e azul claro, acentuando o fundo de um branco encardido e respingado de gotículas de suor, que por ora, penetravam e escureciam cada vez mais o tecido amarrotado sobre o colchão velho de casal.
Ainda atormentada, fui cambaleando até o banheiro da suite, apoiei-me na pia branca do cômodo e pus-me a observar: fios ruivos de cabelo estavam por toda parte, os lenços de papel umidecidos já enchiam o pequeno cesto de lixo, a torneira pingando incessantemente e poças de água umidecendo-me os pés frios, brancos, que contrastavam com o vermelho das minhas unhas mal feitas. Nada disso era novidade. Nos últimos dias, passava horas e horas locomovendo-me entre a cama e o banheiro. O banheiro e a cama. O refúgio. As lágrimas. Emergência. Saída.
Mechas ruivas roçaram meu rosto pálido e sem vida, o sangue fugia-me do corpo, corria num frenezi pelas minhas veias e se diluía em algo desconhecido, que sugava cada vez mais os segundos restantes de minha vida. Com a ponta dos dedos, decorados também com o vermelho-sangue, arrumei as mechas que caiam sem parar. Com a cabeça abaixada e o queixo rente ao peito, senti uma nova e violenta onda de angústia invadir-me por dentro, e antes que pudesse fazer algo, ou até pensar em fazê-lo, fui dominada por aquela sensação arrebatadora, que tinha cessado há minutos atrás, e recomecei a chorar.
Fiquei olhando fixamente para o ralo da pia. De vez em quando, pensava em levantar a cabeça, mas não, seria demais. A ideia de encarar-me no espelho fez com que um arrepio percorresse o meu corpo. Fitei por alguns instantes minhas próprias mãos: os calos, as marcas...meus pés pequenos e gorduchos...e o quanto estava fraca e vulnerável. O gosto forte e amargo de café expresso misturava-se com o agridoce de minhas lágrimas, que não paravam de escorrer, como a água da chuva descendo ladeira abaixo. Meu corpo tremia, e naquele mesmo instante eu soube do que precisava: um drinque.
Fui ao pequeno cubículo que havia dentro do meu quarto, abri a primeira gaveta pesada da cômoda envernizada e lá estavam elas: duas garrafas camufladas em meio a várias peças de roupa. A primeira, mais gorduchinha e redonda, continha um líquido verde escuro vivo que reluzia à luz e mostrava somente um quinto da garrafa; a outra ao lado, era comprida e fina, também possuía um líquido verde, mas de uma tonalidade bem mais clara, contendo ainda quatro quintos do liquido aparentemente suave. Licor e Absinto. Combinação perfeita. Na outra extremidade da gaveta, havia um copo. Já deixava tudo preparado caso precisasse de um drinque. Peguei a bebida e instantaneamente levei-a até a boca. Meus lábios secos sorviam com voracidade aquele líquido, que ia queimando rapidamente a língua e esquentando o meu corpo. O cheiro era forte. Aproximei minhas narinas do copo e como um baque, fui invadida pelo odor de álcool que a bebida exalava. Minha cabeça girou, senti-me um pouco zonza e apoiei-me na parede. Fiquei dominada pela sensação anuviada durante alguns instantes, depois abaixei a cabeça e percebi que o copo estava vazio. Completei-o novamente. As lágrimas pararam, e agora já não sentia tanta dor. Anestesia. Deitei-me na cama e voltei a face para a luz, ela ofuscava meus olhos castanhos, e naquela hora, achei que ficaria cega.
Desviei lentamente o olhar para a janela. Lá fora chovia. O céu estava negro, sem estrelas. Do jeito que eu gostava, um negrume completo. A solidão.
Na sala, fora do meu universo particular, meu pai assistia "TV".
"Está passando aquele filme da borboleta que você gosta", havia falado. Efeito Borboleta. Já havia assistido inúmeras vezes, até assistiria de novo, se não estivesse no encontro com o meu purgatório interior.
"Hoje não, pai. Vou dormir". Não, não dormi. Sentei na beirada da cama e tomei outro longo gole da mistura alcoólica verde. Senti o pulsar das veias. O bater do coração. Pensei automaticamente nele. É, ele. Ele que mesmo depois de quase um ano, a completar nesse mês, ainda invadia-me os pensamentos. Ele. Minha cruz, que devia carregar aonde quer que eu fosse. Nos momentos felizes e tristes, ele estava lá, cotucando a ferida ainda aberta, não deixando que ela cicatrizasse. Ele. Que me matava aos poucos, mesmo não cravando um punhal em meu peito, o que certamente, seria uma boa ideia, menos dolorosa...

Por Mirabelle

3 comentários:

Dorflex. disse...

"And I'm here to remind you,
of the mess you left
when you went away.

It's not fair to deny me,
for the cross I bare
that you gave to me,
You, you, you oughta know..."

lágrimas agridoces, absinto, licor de menta. posso imaginar o sabor de td isso combinado a tristeza e o vazio completo. o estômago dá voltas, o cérebro entorpece e o coração parece que vai explodir. dizem que o tempo é o senhor da razão, mas a verdade é que não importa o tempo, tudo sempre volta, e com mais força. como vc mesma me disse: 'eu queria formatar meu coração'. às vezes o meu pega vírus indesejáveis, e qdo vejo, o estrago já foi feito. qdo a tristeza é sempre o ponto de partida, qdo tudo é solidão. seu coração ainda bate, não se esqueça disso nega. nunca esqueça. e qdo ele deixar de bater, o que restará, bem, o que restará... lembranças. fica em paz.

um beijo de quem lhe adora(e ama!) tanto.

Rodolfo, Nego Jan, Dorflex, Negoflex, Ian e Aureliano.

;*

BRUNO. disse...

As vezes pensamos que o tempo logo nos cura, nos tira a força aquilo que não desejamos.
Mas nem sempre é de seu desejo aliviar nosso sofrimento. Aparenta gostar de nossa dor e se divertir com a mesma.

...

Tentei escrever algo mais legal que isso .. ou pelo menos complementar mas não consegui. Já disse que não sou bom com Humanas .. rsrs
Talvez complete meu pensamento no próximo comentário ou por msn quando nos falarmos.

PS.: Você escreve muito bem, parabéns. Quero ler o livro que Você me disse que escreveu.

Beijos

desabafodascalcinhas.blogspot.com disse...

Um conto ?
Parabéns, Mirabelle, belo conto !
Não sei se ele vai voltar. rs
Tomara que não. Ninguém que nos faça sofrer, merece nossa atenção.
Você tem talento e deve aproveitá-lo.
Gostei do " purgatório interior " , belas e boas expressões.
Abração